Há 5 anos, consórcio deu transparência a dados da pandemia – 07/06/2025 – Equilíbrio e Saúde

Há 5 anos, consórcio deu transparência a dados da pandemia - 07/06/2025 - Equilíbrio e Saúde

Era uma sexta-feira, 5 de junho de 2020, momento em que a Covid-19 já matava um brasileiro por minuto. No terceiro dia seguido de atraso pelo governo federal da divulgação dos dados de mortes e infecções provocadas pelo coronavírus, o então presidente Jair Bolsonaro resolveu falar sobre o assunto.

“Acabou matéria no Jornal Nacional”, afirmou na porta do Palácio do Alvorada. “Não interessa de quem partiu [a ordem para o atraso]. É justo sair às 22h, é o dado completamente consolidado. Muito pelo contrário, não tem que correr para atender a Globo. É o horário adequado. Se ficar pronto às 21h, tudo bem. Mas não vai correr às 18h para atender a Globo, a TV funerária.”

Naquela semana, os atrasos tinham acontecido na quarta (3), na quinta (4) e na própria sexta, uma mudança que ocorria, segundo o governo, em nome de uma suposta consolidação mais aprofundada dos dados.

O problema se acentuava mês a mês. O horário de divulgação do boletim, que era às 17h na gestão do ministro Luiz Henrique Mandetta (até 17 de abril), passou para as 19h, quando Nelson Teich esteve à frente da pasta. Depois avançou para as 22h, sob o comando interino do general Eduardo Pazuello.

Apresentar os dados nesse horário dificultava o registro em telejornais e veículos impressos –em alguns casos, até inviabilizava a divulgação. Mas esse não era o único entrave. O portal no qual o ministério expunha o número de mortos e contaminados havia sido retirado do ar no dia 4 de junho e, ao retornar, passou a apresentar apenas informações sobre os casos “novos”, ou seja, registrados no próprio dia.

Tinham desaparecido os números consolidados e o histórico da doença desde seu começo, entre outras informações.

Na manhã de sábado, dia 6 de junho, horas depois da fala de Bolsonaro, o diretor de Redação da Folha, Sérgio Dávila, teve a ideia de formar uma parceria de veículos dedicados ao jornalismo profissional para buscar as informações necessárias nas secretarias de Saúde dos 26 estados e do Distrito Federal.

Dávila enviou mensagens a executivos de outros órgãos de imprensa, que foram receptivos à sugestão. No final da tarde do mesmo dia, o consórcio estava formado.

As editorias de dados dos veículos foram, então, incumbidas de organizar a coleta de dados. No caso da Folha, a operação foi coordenada pelo jornalista Fábio Takahashi.

“O governo federal, por meio do Ministério da Saúde, deveria ser a fonte natural desses números, mas atitudes recentes de autoridades e do próprio presidente colocam em dúvida a disponibilidade dos dados e sua precisão”, dizia a reportagem da Folha que apresentava o consórcio.

“A união das principais empresas de jornalismo profissional do país foi histórica: garantiu que diariamente haveria dados confiáveis. E também deixou uma mensagem simbólica importante: a sociedade pode confiar no jornalismo como um pilar da democracia”, afirma o jornalista.

As distinções recebidas pelo consórcio atestam o peso histórico a que Garavello se refere. A iniciativa ganhou o prêmio ANJ (Associação Nacional de Jornais) de liberdade de imprensa e o Mídia do Ano, da Aberje (Associação Brasileira de Comunicação Empresarial). Também conquistou o prêmio Audálio Dantas, da Oboré Projetos Especiais.

“Quando o Ministério da Saúde passou a atrasar deliberadamente os dados da pandemia, nós, na Globo, decidimos interromper a novela com plantões do Jornal Nacional. Se a intenção era impedir que o JN levasse os números ao ar, o tiro saiu pela culatra: os dados entraram no ar num horário de ainda mais audiência. Em seguida, o ministério alterou a metodologia para manipular os números e esconder a gravidade da situação”, lembra Ali Kamel, na época diretor-geral de jornalismo da Globo (TV Globo, GloboNews e G1).

“Foi então que recebi uma mensagem de Sérgio Dávila, diretor da Folha, propondo a criação de um consórcio entre os principais veículos do país”, diz o jornalista, hoje coordenador do conselho editorial do Grupo Globo.

“Aceitamos de imediato. E o que se formou ali foi algo exemplar: um pacto entre Redações concorrentes, unidas pelo compromisso de informar. Num momento em que o governo tentava apagar os dados, a imprensa reagiu com transparência, rigor e colaboração”, afirma Kamel.

“Olhando agora, com o distanciamento do tempo, é possível dizer que o consórcio é um marco na história do jornalismo brasileiro. Foi uma operação complexa, posta de pé em tempo recorde, e com enorme retorno para a sociedade”, afirma Alan Gripp, diretor de Redação do jornal O Globo.

Em 8 de junho de 2020, cada órgão de imprensa começou a divulgar o resultado desse acompanhamento das secretarias de Saúde em seus respectivos canais.

Em janeiro de 2021, o projeto também passou a registrar a cobertura vacinal da população com uma ou duas doses. Neste mesmo mês, lançou a campanha “Vacina Sim”, para conscientizar a população sobre a importância de se vacinar contra a Covid-19.

As doses de reforço da vacina foram incluídas no levantamento do consórcio a partir de setembro daquele ano.

“Além de prestar um serviço crucial para a população, a ação do consórcio representou a defesa da democracia, da liberdade e direito à informação, contra o negacionismo e obscurantismo do governo da época”, diz João Caminoto, àquela altura diretor de jornalismo do Grupo Estado.

“Para nós jornalistas, foi um momento de resgate da relevância da missão jornalística, que é servir à sociedade, independentemente se teremos muitos cliques ou não.”

De acordo com Eurípedes Alcântara, atual diretor de jornalismo do Grupo Estado, “a mobilização contra a Covid-19 só podia funcionar em um ambiente de plena transparência de dados. No Brasil, o governo Bolsonaro tentou omitir dados e atrasou boletins”.

Ainda segundo ele, “essa falha grave do Estado foi minorada pela formação de um inédito consórcio de órgãos de imprensa. Durante 965 dias, o consórcio foi fonte confiável de dados sobre o impacto da Covid e o alcance da vacinação. Nesse período, a transparência, a valorização do trabalho profissional de médicos e cientistas e até a compaixão, que faltaram ao governo, foram supridas pela imprensa”.

Ao longo de mais de dois anos e meio, mais de uma centena de jornalistas trabalharam todos os dias para coletar e divulgar os números de contaminados e mortos por Covid, além da quantidade de vacinados.

O fim do consórcio em janeiro de 2023 não significava o fim da pandemia. No entanto, não havia mais a necessidade de apuração diária dos dados em conjunto pelos veículos que participaram do projeto.



Folha SP

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