Dentro do mundo do trabalho, pessoas não binárias – aquelas cuja identidade de gênero não se encaixa na dicotomia “homem” e “mulher”, “masculino” e “feminino” – encontram dificuldades relacionadas à convivência nos ambientes laborais e entraves para a ascensão profissional. No limite, muitas delas são excluídas do mercado e acabam relegadas a trabalhos informais e subempregos.
O artigo é o primeiro derivado do doutorado em andamento de Akira, que explora a invisibilidade das pessoas não binárias nas organizações e nos estudos organizacionais. É uma invisibilidade, explica a pesquisadora, que geralmente se dá por uma tentativa de “normalizar os corpos”, forçando indivíduos a se adequarem a uma norma binária de gênero. Isso pode acontecer por meio do vestuário, dos banheiros, da divisão sexual dos cargos e oportunidades ou por uma série de violências cotidianas.
Na pesquisa acadêmica, é a prevalência de um binarismo de gênero que acaba por silenciar identidades não binárias. “E qual é o desafio? É que, quando esses grupos não são nomeados, eles não só deixam de existir nos estudos, mas também nas possíveis políticas públicas que podem ser desenvolvidas a partir desses estudos”, afirma.
“Eu venho do mercado para a academia justamente após uma transição de gênero. Na época, eu trabalhava em um escritório de contabilidade, cuidava da parte de gestão de recursos humanos. Quando eu falo para o público, tanto nas redes sociais, quanto nas conversas, que eu sou uma pessoa não binária, a gente percebe que realmente essas pessoas acabam se afastando. E aí claro que fica aquele incômodo, né? Por que que o gênero determina tanto os espaços que a gente pode ou não acessar?”, questiona.
Um ambiente de violências
De acordo com Akira, para pessoas não binárias, o grande desafio está em permanecer no mercado de trabalho. “Entrar é uma dificuldade, mas, quando você está lá dentro, existem múltiplos processos de violência”, diz a pesquisadora, apontando não necessariamente para uma violência física, mas aquela que é “mais cansativa e adoecedora, aquela que é recreativa, aquela violência que são as piadinhas, são a invalidação constante do seu gênero”.
“Enquanto uma pessoa cisgênera, heterossexual, branca está indo para o mercado de trabalho, chega, consegue um emprego e a preocupação daquela pessoa é exercer a sua função, a preocupação de uma pessoa não binária é se eu vou chegar viva no meu trabalho, se eu vou conseguir ter um dia sem receber algum tipo de violência recreativa, uma piada sobre o meu corpo, sobre o meu gênero”, afirma.
Como Akira coloca, as pessoas não binárias estão em uma posição na qual não conseguem ascender profissionalmente. O que vai de encontro com um discurso meritocrático que prevalece nas organizações, de que a competência é o único fator considerado para as vagas e promoções. “Você pode ter a melhor formação, o currículo, os contatos, mas você não chega naquele espaço porque você ocupa esse ‘não lugar’, ou seja, você não é percebida, percebido, percebide como uma possibilidade para exercer aquela função”, explica.
O artigo também cita outros aspectos dos ambientes laborais que funcionam como barreiras, como as políticas binaristas de vestimenta e a falta de banheiros neutros.
Excluídos do mercado, excluídos de direitos
Fora do mercado de trabalho, pessoas não binárias recorrem à realização de pequenos empreendimentos ou trabalhos informais. É comum também que exerçam funções que não dependam da aparência ou de muitos recursos, como serviços de atendimento ao público. Akira aponta que, quando nada disso é suficiente, esses grupos são levados à margem da sociedade e acabam caindo no desemprego e, em muitos casos, na prostituição.
“Pensando em pessoas não binárias, esse ‘não binário’ habita muito a questão da curiosidade, então é um corpo visto como um lugar de fetiche”, critica.
Mais adiante, a questão da previdência social acaba sendo, também, problemática. No Brasil, o direito à aposentadoria é medido a partir de um critério binário de gênero. Para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), o critério de idade varia entre 30 anos de contribuição e idade mínima de 60 anos para mulheres e 35 anos de contribuição e idade mínima de 65 anos para homens. A pesquisadora aponta, no entanto, que o problema da previdência é anterior a isso: “Uma pessoa não binária dificilmente vai conseguir chegar ao tempo de contribuição, ou seja, tempo de trabalho formal, para conseguir ter uma a chance de aposentadoria”.
O entrave está não apenas no tempo de inserção no mercado formal de trabalho. Akira aponta um estudo realizado na Inglaterra, publicado em 2023 na revista JAMA Network Open, indicando que pessoas que não atendem a um padrão binário de gênero tendem a ter uma expectativa de vida inferior.
Com, e não sobre
O artigo também tem um caráter propositivo, principalmente no que diz respeito à pesquisa acadêmica sobre o tema. Akira enfatiza a proposição de que mais pesquisas sobre pessoas trans e não binárias sejam conduzidas com a participação de pesquisadores inseridos nesses grupos, algo que não acontece na maior parte dos casos. “Dificilmente vão ser pessoas cisgêneras pesquisando com pessoas trans, mas sim sobre pessoas trans. E qual é o problema? É que essas pessoas não percebem pessoas não binárias como sujeitas do saber, do conhecimento”, afirma.
“Você se sente às vezes uma ratinha de laboratório”, relata a pesquisadora. “A gente recebe constantemente convites para participar de entrevistas e responder questionários, mas [nunca é] convidada para participar de um estudo.”
*Estagiário supervisionado por Silvana Salles
Este texto é uma republicação do Jornal da USP. Leia o artigo original.
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Fonte ==> Você SA