A zumbificação da CLT – e por que ela virou um xingamento

A zumbificação da CLT – e por que ela virou um xingamento

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eu irmão tem 20 anos e faz jus à idade e ao estereótipo geracional do qual pertence. É consumidor assíduo de TikTok, no qual passa bastante tempo do dia, e está sempre a par das tendências, termos e piadas usadas no santuário jovem da pós-ironia. Ele também é, naturalmente, mais novo do que eu. Quem tem um desses em casa sabe o que significa: um exercício intelectual diligente (e, ele defenderia, até saudável) de ofensas diárias. 

Ao seu rico inventário de insultos, recentemente, ele adicionou o termo CLT. Por algum motivo, a Consolidação das Leis do Trabalho tornou-se xingamento digno de integrar a lista de desaforos à primogênita. O meu estranhamento com o uso foi compartilhado com a arquiteta Nyrlei Dias, mãe de Daniel (11). Ela conta à VC S/A que, no final de abril, viu seu filho usar o termo com conotação similar. “É como se ele e os colegas estivessem dizendo: ‘não vai ser nada na vida, vai virar CLT’”, diz. Ela relata que, no dia seguinte, o tópico virou debate em sala de aula, proposto pelo professor de atualidades do colégio de Daniel. 

Desde que a influenciadora Fabiana Sobrinho gravou um vídeo contando sobre o uso pejorativo do termo por sua filha de 12 anos, em janeiro, uma profusão de relatos similares levantou a discussão entre pais, professores e intelectuais. No vídeo, gravado junto à filha, Fabiana relata: “Perguntei o que ela achava que era ser CLT e por que via isso como algo ruim. Conversei com outros adolescentes e todos têm o mesmo pensamento: de que ser CLT é ser fracassado”. É como se, antes motivo de orgulho, a carteira assinada passasse a representar um atestado de precarização.

Segundo dados do último Caged, de abril de 2025, o país chegou a 48 milhões de empregos com carteira assinada – número recorde da nova série histórica, iniciada em janeiro de 2020. Isso significa que nunca houve tantos vínculos trabalhistas formais no Brasil como agora. O que está em baixa, então, não é exatamente a modalidade de trabalho em si: e sim a percepção social da nova geração em relação a ela. 

Nunca houve tantos vínculos trabalhistas formais no Brasil como agora. O que está em baixa, então, não é exatamente a modalidade de trabalho em si: e sim a percepção social da nova geração em relação a ela. 

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Sujeito de direitos

E isso não dependia só de fatores operacionais, como grana e infraestrutura, por exemplo. Também havia a barreira social: quatro séculos de tradição escravista tinham moldado uma visão negativa acerca do trabalho na sociedade brasileira. Para a industrialização deixar de ser um sonho febril e se tornar realidade, isso precisava mudar. 

Como o nome diz, ela consolida uma série de leis trabalhistas que estavam dispersas na legislação brasileira, e estabelece normas para as relações de trabalho individuais e coletivas. 

Em sua configuração original, a CLT carregava 921 artigos. Eles regulamentavam uma jornada de trabalho padrão de 8 horas diárias, férias remuneradas, licença-maternidade e seguro-desemprego, por exemplo. Inclusive, antes da criação do Sistema Único de Saúde, em 1988, o acesso à saúde pública era restrito a quem era CLT ou contribuía à previdência social. “Na época, era perceptível quem era ou não considerado formal”, diz o professor.

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O fantasma de 2017

Setenta e quatro anos se passaram e, ao longo do caminho, a Consolidação sofreu mais de 500 alterações. Um estudo feito por Jorge Luiz Souto, professor de Direito da USP e juiz do trabalho, apontou em 2017 que, dos artigos que compunham a CLT originalmente, apenas 625 diziam respeito a direitos trabalhistas propriamente ditos. Os outros 296 regulavam o processo do trabalho, como licitações, contratações e por aí vai. 

Desses 625, mais da metade (370) foram alterados ou revogados por leis posteriores. Isso inclui artigos que diziam respeito à proteção da mulher, à oficialização do 13º salário, do trabalho à distância, do aviso prévio e do banco de horas, por exemplo. Apesar disso, o professor reitera em sua pesquisa que grande parte das mudanças aconteceram no regime militar, nos anos 1960, tentando conter a organização sindical fortalecida na época (e prevista pela CLT).

Mas foi em 2017 que a consolidação sofreu uma transformação brutal. O então presidente Michel Temer sancionou a Lei 13.467, que alterou, revogou e adicionou 106 artigos à CLT. Conhecida como Reforma Trabalhista, ela via a legislação como um problema a ser resolvido no Brasil. 

“A reforma fez com que o tempo das pessoas estivesse muito mais subordinado à lógica econômica e muito menos à vida”, complementa José Krein. Ele se refere à legalização do chamado trabalho intermitente. Consiste na contratação de trabalhadores sem horário fixo: o funcionário fica à mercê da demanda e dos tempos da empresa para trabalhar e, consequentemente, receber uma remuneração. Ele pode firmar contratos com mais de um lugar ao mesmo tempo. Não há seguro-desemprego previsto para a modalidade.

“A reforma fez com que o tempo das pessoas estivesse muito mais subordinado à lógica econômica e muito menos à vida”

José Dari Krein, professor de Economia do Trabalho na Unicamp.

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Na teoria, isso faria com que as empresas assinassem trabalhadores que costumavam atuar com bicos, e reduziria a informalidade no país. Na prática, além de ser usado pelas companhias para driblar o trabalho formal tradicional, o cenário da informalidade no Brasil seguiu virtualmente inalterado. 

39% da força de trabalho brasileira em 2024 era composta por trabalhadores sem carteira assinada

Ela também desestimulou a busca dos trabalhadores pela justiça do trabalho. Se o indivíduo perdia a ação trabalhista contra a empresa, mesmo que fosse beneficiário da justiça gratuita, era obrigado a pagar honorários periciais e advogados da outra parte. A decisão foi revogada em 2021.

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Promessa de estabilidade 

Em 2024, a Justiça registrou 2 milhões de ações trabalhistas, o maior aumento desde a reforma trabalhista. Segundo o Tribunal Superior do Trabalho, mais pessoas pediram demissão, foram demitidas ou trocaram de emprego, o que levou ao não pagamento dos direitos devidos aos trabalhadores por parte das empresas.

Se antes não vivíamos sob cenário ideal, a Lei 13.467 sedimentou a precarização do trabalho no Brasil de vez. Nesse sentido, os especialistas entendem que o comportamento da juventude é, em partes, uma forma de denúncia. “Na mente desses jovens, é como se a consolidação fosse um corpo sem alma”, analisa Alice Oleto, professora e pesquisadora da Fundação Dom Cabral. A especialista chama o fenômeno de zumbificação da CLT.

Alice reitera que a consolidação foi, sim, um marco extremamente civilizatório quando falamos sobre relações de trabalho no Brasil. Por décadas, ter a carteira assinada era motivo de orgulho e sobretudo de cidadania. “Se você tivesse carteira assinada, você tinha onde cair morto”, brinca.

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“O banco de horas que eu nunca enxergo, as injustiças sem penalidade, as férias que nunca acontecem. Por que um jovem ia lutar para ter a carteira assinada se vê o pai, mãe e amigos trabalhando nessas condições?”, finaliza.

“Na realidade do Brasil, as pessoas não têm esses direitos respeitados”

O empreendedorismo de duas faces 

Se ser CLT não é mais uma opção atrativa para esses jovens, o que sobra? 

Segundo um estudo recente feito pelo Sebrae, o número de jovens empreendedores (18 a 29 anos) cresceu 25% nos últimos 12 anos – atingindo a máxima da série histórica, iniciada em 2012. Outra pesquisa de 2024, feita pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) em parceria com o Instituto de Pesquisa IDEIA, mostrou que três a cada dez jovens brasileiros até os 27 anos sonham em ter o próprio negócio. 

Esses somariam à massa de 48 milhões de CNPJs já existentes, que colocam o Brasil em sexto lugar no ranking de países com a maior taxa de empreendedores estabelecidos. Estamos à frente de países como Estados Unidos, Reino Unido e Itália. 

Isso acontece porque, além da precarização factual do trabalho, há também uma mudança no âmbito cultural. Alice Oleto explica que, depois da pandemia, há a ascensão da flexibilidade como valor – o que contrasta, e muito, com a rigidez proposta pelo modelo de trabalho das empresas. Uma pesquisa feita em 2023 pelo WeWork mostrou que, para 95% dos colaboradores por aqui, a autonomia é um fator decisivo na hora de aceitar ou não um emprego. 78% dos entrevistados ainda afirmaram que trocariam de companhia por questões relacionadas a ela.

Acontece que essa modalidade não é um caminho menos tortuoso (e mais flexível) do que a carteira assinada: ao contrário. Um levantamento do Sebrae-SP de 2021 calculou que os empreendedores brasileiros trabalham, em média, 9,3 horas por dia. Isso equivale a cerca de 46,5 horas semanais (considerando cinco dias úteis).

“A glamourização do empreendedorismo pode ser dominante na cultura, mas é violenta na realidade brasileira”, defende Ana Fontes, CEO e fundadora da Rede Mulher Empreendedora, comunidade que apoia mulheres em situação de vulnerabilidade social. Atraídos por promessas de autonomia e de sucesso, muitos jovens são levados a uma visão mitológica da modalidade de trabalho – que defende a meritocracia e o trabalho duro como os únicos fatores de sucesso para ter negócio próprio. 

“São duas faces: o empreendedorismo popularizado, das startups, dominante culturalmente; e o empreendedorismo por necessidade, que é predominante de fato. É o de vender almoço para pagar a janta, o de sustentar a família, o de trabalhar duplas jornadas”, complementa Ana Fontes. 

“O argumento do empreendedorismo é sedutor porque ele não diz ‘trabalhe sem direito nenhum’. Ele diz: seja seu próprio chefe”

Neste contexto, a memeficação da CLT – com todas suas falhas, dificuldades e questões – descaracteriza a importância da proteção social que ela traz. E se o discurso é perigoso para todos, imagine para aqueles que estão adentrando a força de trabalho no futuro. “É como se a precarização do trabalho fosse maquiada. Mas ela continua ali”, finaliza Alice. 

Make CLT Great Again

Para a CLT sair do stand-up e voltar a ser um estatuto respeitado pela nova geração, os especialistas foram unânimes: além da educação maior dos jovens sobre os direitos trabalhistas – assim como fez o professor e Nyrlei, mãe de Daniel –, é preciso repensar a legislação como um todo.

“A consolidação é um estatuto de direitos muito relevante. Mas ela precisa ser capaz de integrar novamente direitos que foram retirados, e adicionar outros que, juntos, possam consolidar boas condições de trabalho, salários dignos e jornada justa”, defende Adriana Marcolino, do Dieese. 

Um exemplo interessante nesse sentido aconteceu no começo do ano, quando a deputada Erika Hilton protocolou uma PEC que pedia o fim da escala 6×1 (seis dias trabalhados para um de folga, muito comum entre trabalhadores de supermercados, restaurantes, hospitais e postos de gasolina, por exemplo). 

O texto também propunha uma jornada de trabalho de quatro dias na semana, reduzindo a carga máxima de trabalho de 44 para 36 horas semanais. A PEC foi protocolada na Câmara dos Deputados, mas ainda segue sem previsão de votação. 

Ainda assim, o movimento Vida Além do Trabalho – uma iniciativa social brasileira liderada pelo influenciador digital Ricardo Azevedo, que busca transformar a legislação trabalhista no país, com foco na escala de trabalho 6×1, e promover uma jornada mais equilibrada, com mais tempo para a vida pessoal e familiar – ganhou tração significativa entre a juventude que já pega no batente. “Foi um respiro ver a organização desses jovens”, diz Valdete Souto. “Essa organização é extremamente importante para combater a precarização.” 

E também mostra que o jovem brasileiro quer remuneração e horários justos, qualidade de vida, propósito no trabalho. Tudo inteiro, e não pela metade. Independentemente do que os nossos irmãos mais novos (e o TikTok) dizem. 

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Fonte ==> Você SA

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