Na zona norte de São Paulo, duas amigas de infância voltaram a estudar juntas aos 67 anos —desta vez, para entender o celular. Com o curso de inclusão digital da UBS (Unidade Básica de Saúde) do Horto Florestal, as aposentadas ganharam autonomia, ampliaram o círculo social e passaram a acessar serviços de saúde com mais facilidade.
Na unidade, uma média de 5.200 pacientes são atendidos por mês, sendo que, deste total, 55% são idosos. O projeto surgiu a partir da necessidade do território, conta João Carlos de Souza, gestor da UBS. Embora a Secretaria Municipal da Saúde ofereça serviços digitais, como o Agenda Fácil, a maioria dos usuários era jovem, sendo que a maior parte do público atendido no local tem mais de 60 anos.
Foi a partir desse cenário que surgiu a oficina piloto, em março deste ano, inicialmente direcionada para o uso de serviços de saúde. Com o tempo, porém, os organizadores perceberam que o impacto ia além do aprendizado técnico para os aplicativos da prefeitura. Além de aprender a marcar consultas, os idosos passaram a se sentir mais seguros, conectados e menos sozinhos.
Com aulas quinzenais, o curso teve duração de dois meses e formou cinco participantes em sua primeira edição . Uma nova turma começa em agosto, e já há uma lista de espera para outubro. “Aulas com grupos pequenos garantem que todos consigam acompanhar. A ideia é ampliar a atividade com apoio dos próprios formandos das turmas anteriores, que serão voluntários”, diz Souza.
As oficinas são realizadas com os celulares dos próprios participantes, o que facilita a familiaridade com os aparelhos. Os conteúdos vão desde o básico, como navegar na internet ou baixar aplicativos, até o uso de email, Google Maps, redes sociais e plataformas da prefeitura, como o e-Saúde SP e o Agenda Fácil.
Além de dar mais autonomia em saúde, o curso teve efeitos inesperados na vida social e emocional dos alunos. Um dos participantes, que antes sacava toda a aposentadoria no dia 5 de cada mês, por medo de não saber usar o aplicativo do banco, agora paga contas com QR Code e vai à agência apenas para retirar o essencial.
As aposentadas Magaly Esteves e Maria Isabel da Silva, ambas de 67 anos, decidiram fazer o curso de inclusão digital juntas. As duas se conhecem desde os sete anos e a participação no projeto levou mais autonomia para o dia a dia delas.
Antes disso, as duas também enfrentaram juntas o desafio de parar de fumar, com a ajuda do grupo de combate ao tabagismo da UBS. Começaram com o hábito ainda na adolescência e conseguiram abandonar o cigarro depois do curso oferecido na unidade.
Para elas, o maior ganho do curso de inclusão digital foi perceber que não estavam sozinhas. “Às vezes, a gente acha que o problema é só nosso. Mas aí vê que outras pessoas têm as mesmas dificuldades, às vezes vivem a mesma solidão. Isso faz muita diferença”, diz Magaly.
No início, ambas usavam o celular apenas para ligações e aplicativos de mensagem. Tarefas simples, como baixar um aplicativo, pareciam distantes. Hoje, Magaly busca receitas e tutoriais de crochê no YouTube e aprendeu a comprar materiais pela internet, o que evita deslocamentos desnecessários.
Maria passou a acessar plataformas públicas, como o portal Gov.br, para consultar documentos, benefícios e agendamentos. “Teve uma vez que fui fazer um exame e não levei o RG. Não fui atendida. Depois do curso, aprendi a baixar o documento digital e não perdi mais nenhum compromisso”, afirma.
Teve uma vez que fui fazer um exame e não levei o RG. Não fui atendida. Depois do curso, aprendi a baixar o documento digital e não perdi mais nenhum compromisso
Ela também aprendeu a entrar em consultas por videochamada, algo que antes parecia impossível. “Perdi uma consulta porque não consegui entrar na chamada. Não conseguia ouvir o médico. Agora, se tiver que fazer, sei como funciona.”
As duas também relatam a frustração de depender de parentes que nem sempre têm tempo —ou paciência— para ensinar. “Eles fazem no automático. A gente até entende o que foi feito, mas não aprende”, diz Magaly. “Não é má vontade, é falta de tempo. Mas não dá para viver esperando alguém disponível.”
A ideia agora é buscar também os idosos que não frequentam a unidade nem participam de outros grupos ativos. A adesão ainda é um desafio, especialmente entre quem vive em isolamento. “Tem idoso que não sabe o que é inclusão digital e, por isso, não se interessa de imediato. Mas a socialização que vem junto tem sido um motor importante”, afirma Souza.
A proposta é que a experiência no Horto Florestal sirva de modelo para outras unidades. “Se outras UBSs identificarem essa demanda, estamos prontos para ajudar. É uma forma de fortalecer o território e ampliar o acesso à saúde e à cidadania para quem mais precisa.”
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tinha, em 2023, cerca de 33 milhões de pessoas com 60 anos ou mais —número que praticamente dobrou desde 2000, quando eram 15 milhões. A PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), divulgada em agosto de 2024, mostra que o número de idosos que acessam a internet no país mais que dobrou entre 2016 e 2023, percentual que subiu de 24,7% para 66%.
Para Leonardo Oliva, presidente da SBGG (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia), projetos como o desenvolvido no Horto Florestal são fundamentais para a saúde da pessoa idosa. Eles promovem autonomia, inclusão social e saúde mental, além de facilitar o acesso a recursos que hoje são considerados básicos, como videochamadas e serviços de saúde online.
Segundo ele, a alfabetização digital tem impacto direto na autoestima, na independência e na prevenção do isolamento. Durante a pandemia, por exemplo, os idosos que já dominavam as ferramentas digitais conseguiram manter vínculos afetivos e acesso a cuidados.
“Mesmo em cidades pequenas, quem tem esse letramento digital pode fazer uma teleconsulta, iniciar uma terapia online ou buscar conteúdos de lazer e informação com mais facilidade”, afirma.
Oliva defende que experiências como essa sejam ampliadas e ganhem escala nacional. Para ele, o Brasil é um país marcado por desigualdades regionais e sociais que pode se beneficiar do potencial da tecnologia para reduzir distâncias, desde que os mais velhos estejam preparados para usá-la.
Além do impacto individual, ele destaca os efeitos dos grupos na saúde coletiva. Participar de atividades com outras pessoas da mesma faixa etária, diz, aumenta o engajamento e torna o processo de aprendizagem mais efetivo.
O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.